Ainda sobre as biografias não autorizadas

Interrompemos a programação intermitente deste blog com um acréscimo sobre a tão falada questão das biografias não autorizadas. O assunto já está ficando chato, mas são tantas as distorções que eu também vou reclamar.

Talvez por trabalhar com livros, talvez por ser jornalista (ou um dia ter estudado para sê-lo), ou ainda por ser leitora ávida de biografias desde a adolescência, o assunto me é caro.  A forma como tem sido conduzida a discussão,  com artistas que tanto admiro assumindo posições degradantes, me dá coceira e vontade de gritar.

Vamos aos meus argumentos pois, por tópicos para facilitar, começando pelo mais mesquinho, enganado e enganador deles, o do dinheiro:

– Dizem por aí que biógrafos e editoras fazem rios de dinheiro enquanto os pobres biografados ficam a ver navios. Ora, façamos uma conta simples. Uma biografia de determinado artista tem preço de capa de R$ 39,90, preço médio (barato) de um livro de 200 a 300 páginas. Desse valor, tiramos os descontos comerciais (o preço real pago pela livraria para vender o livro, em torno de 50% do valor de capa). Suponhamos que tal livro venda 20 mil exemplares, número significativo para os nossos padrões de país não leitor. 20mil x 20,00 (arredondando) = 400.000,00, certo?

Uma dinheirama? Não! Porque por mais que o preço final estabelecido pela editora leve em conta os custos de produção do livro, raramente consegue cobrir as despesas com funcionários, infra-estrutura, logística de armazenamento e transporte, eventuais perdas etc. E isso levando em conta que o livro será um sucesso, e que venderá muito, e sairá na imprensa, e que não será devolvido pelas livrarias, o que nem sempre acontece.

Ao biógrafo, aquele magnata, restam 10% das vendas líquidas, ou seja, no caso acima, R$ 40.000,00 pelo esgotamento de uma tiragem que, repito, é expressiva e difícil de obter. Mas quem ganha R$ 40.000,00 nesse Brasil de meu Deus? Até seria uma bolada receber isso de um dia para outro, mas normalmente, escritores que tocam uma pesquisa extensa a sério chegam a ficar anos em função de um livro, período em que não conseguem se dedicar intensivamente a outras atividades remuneradas. E esse valor é proporcional à venda, ou seja, se o livro encalhar na prateleira, necas.

O que mais me espanta é ouvir um argumento frouxo desses de artistas que escrevem livros e sabem como funciona este mercado. É muito difícil ficar rico com livros no Brasil – ainda mais com biografias – e a conta das editoras não é tão fácil de fechar.

E a privacidade?

Eu acho, e posso estar enganada, que a partir do momento em que se opta por desenvolver uma carreira artística existe a perspectiva de expor seu trabalho – e consequentemente, expor-se em público. Me parece ser esse o objetivo do artista, tornar-se conhecido por aquilo que faz. Alguém tem a ilusão de que, ao atingir a fama, o sucesso, o reconhecimento, sua figura não passará a ser alvo da curiosidade, o que, inevitavelmente, traz prejuízos à privacidade? Ainda mais em um contexto espetacularizado, que valoriza de forma exacerbada a imagem, e faz da observação da vida alheia fetiche, a transformando em mercadoria de consumo. Pois é, e aí é que esse argumento me parece extremamente equivocado. Biografias, ao menos as sérias, não têm como objetivo devassar, maldizer, e achincalhar a vida dos biografados. Isso quem faz é a revista de fofoca, o paparazzi, o site de flagras na internet.

Vocês estão confundindo as coisas, amigos. Uma biografia bem feita tem sim o intuito de reconstruir a vida de determinado personagem que se mostra, por algum motivo, relevante. E essa reconstrução deve – e em boa parte dos casos é o que realmente ocorre – se basear em entrevistas, ampla pesquisa, estudo, checagem exaustiva de fatos e acontecimentos (leiam, por favor, sobre o processo de produção de Marighella, de Mario Magalhães, para ter uma idéia). Reconstruir uma trajetória de vida vai, inevitavelmente, passar pelo retrato das contradições e conflitos que são matéria-prima de todo o ser humano. E esse medo de se ver exposto em mais de uma faceta, seu dark side? Me espanta que artistas tão transgressores em todos os sentidos estejam tão preocupados em mostrar seus lados não tão limpinhos e cheirosos. Não são exatamente eles que, com suas obras, deveriam nos ajudar a entender o feixe de bons e maus momentos, sentimentos e acontecimentos de que somos feitos?

É lógico que há a possibilidade de uma biografia não autorizada se mostrar ofensiva e degradante. Mas para isso existem os mecanismos legais que já protegem aqueles que se sentem vilipendiados por outrem. Então para dirimir os riscos de uma biografia mal feita, as proibimos de todo? Não seria o mesmo que propor a extinção da internet para dar cabo daqueles que a utilizam para disseminar ideais de ódio? Exterminar o meio para não correr o risco, ao invés de corrigir as distorções, não me parece a melhor saída.

Mas se me oferecem uns caraminguás…

Esse argumento cruza o que há de pior nos dois primeiros. “A gente resguarda a privacidade, mas por uns vinténs podemos repensar”. Ah, então a tão cara vida privada do cidadão pode ser negociada, colocada na bolsa, e quem der mais leva? Não tenho nem o que dizer, é lamentável.

Censura sim!

Ouvi por aí que usar esse argumento de que é censura proibir biografias não autorizadas é forçar a barra. Não acho. Proibir previamente alguém de escrever sobre o quê, ou quem quer que seja agora mudou de nome?

Escondendo a obra ao invés de divulgá-la

Essa é de chorar. No meio da gritaria dos vivos contra as biografias não autorizadas, familiares de artistas, escritores e outras personalidades já falecidas também resolveram entrar na dança. Minha gente, não é assim que se protege a obra e o legado de entes queridos, proibindo que se escreva sobre eles. E o que dizer então de resolver caçar obras já escritas e publicadas? É o que acaba de acontecer com o livro de Toninho Vaz sobre Paulo Leminski, cuja nova edição foi vetada pela família do poeta por causa do acréscimo de um trecho sobre o suicídio de seu irmão.

Falando por mim, não consigo imaginar a vida sem a leitura de O anjo pornográfico, de Ruy Castro, que me despertou para a obra de Nelson Rodrigues, ou de Chatô, de Fernando Morais, que me ensinou mais sobre a história dos meios de comunicação no Brasil do que quatro anos de faculdade. É uma pena que as famílias de figuras tão fundamentais, que volta e meia vetam qualquer tipo de iniciativa biográfica, as vejam como uma ameaça ao invés de uma oportunidade de perpetuação e, muitas vezes, de redescoberta.

É, a coisa está tão feia que me vejo, atualmente, acordando no meio da noite para checar se meus amados exemplares de Estrela Solitária, Olga, entre outros ainda estão na estante, ou se foram confiscados por um bando enlouquecido de artistas (muitos deles que sequer foram biografados sem autorização), e levados direto para a fogueira, atitude  que nos lembra aquilo de pior que já produzimos em termos de humanidade. Finalizo este texto abraçada à minha biografia de Carlos Marighella que, por sinal, acaba de ser justamente agraciada com o Prêmio Jabuti de 2013.